domingo, 26 de junho de 2011

DEFINIÇÃO DO JUÍZO COMPETENTE. DIREITO INDIVIDUAL X DIREITO COLETIVO.

1)    Cada demanda nova no judiciário de um Estado da Federação implica congestionamento, talvez o fenômeno mais corrosivo à jurisdição contemporânea. Nessa linha, o congestionamento in genere constitui fator de relevância na exegese legal necessária para resolver o problema da competência territorial.
2)    Ocorrendo um conflito entre o direito individual de escolha da jurisdição e o interesse coletivo ao menor congestionamento, é viável ao Juiz tratar do caso na perspectiva da regulação da coexistência dos dois direitos, excluindo o primeiro e preservando a idéia de menor congestionamento, porque obviamente mais relevante do ponto de vista social, razão de estarmos falando em abuso de direito, declinável até de ofício.
3)    O congestionamento para constituir fator de relevância na exegese legal necessária para resolver o problema da competência, diz respeito ao conflito que resulta entre as Justiças Estaduais e não apenas entre as comarcas de uma mesma Justiça Estadual. Em relação a essas, quando eventual dúvida em relação a competência territorial se forma, se resolve pelas regras comuns da definição da competência territorial, e, por conseqüência, as regras da definição da competência relativa.

A questão para análise diz respeito a ser competente, ou não, a Justiça de um determinado Estado da Federação, para processar e julgar ações ajuizadas em desfavor de parte demandada que possua filial ou sucursal no território da comarca deste Estado onde foi efetivamente proposta a demanda, mas, não tendo a parte autora, nem residência ou domicílio e nem o contrato possui cláusula de eleição no foro onde a demanda foi proposta.
Aparentemente o objeto do presente recurso, é a definição da competência territorial e, se analisado só como tal, estaríamos tratando de competência relativa, onde seria inegável a aplicação da Súmula 33 do STJ e a solução deveria se dar com base no direito da parte demandante escolher o território do juízo, dentro do que lhe garante as normas previstas na Seção III, Capítulo III, Título IV, do CPC, a partir do art. 94 do Codex Processual, em especial quando à demanda for aplicável a regra do art. 100, IV, em qualquer de sua letras “a” a “d”, do CPC. Ou, ainda, quando a demanda for protegida pelo Código de Defesa do Consumidor, garantir que a regra da escolha do foro pelo autor seja resguardada, quer na previsão geral do art. 6°, VIII, como na específica do art. 93, I e II, ambos do Código Consumerista.
Mas não se trata de uma definição tão simplista assim, não!
Para responder a questão se pode ou não, qualquer litigante residente ou domiciliado em qualquer parte do território nacional, ajuizar sua demanda em qualquer Comarca do País, com ou sem a formação de litisconsórcio ativo facultativo, estes também com distintos domicílios e espalhados País afora, bastando que a parte demanda tenha sede ou sucursal na comarca escolhida, não creio e nunca acreditei, na simplista solução da definição territorial do juízo, e nem que as regas da definição da competência relativa fossem a solução.
De início pressentia, e assim decidia, que o ajuizamento de uma demanda em comarca, não só distante, mas de outro Estado da Federação da de origem do autor ou do fato, violava o juízo natural e, por tal, deveria ser afastada essa violação, o que poderia ser decidido até de ofício.
Mas, a afirmação de que a escolha da Justiça de um determinado Estado Federado feriria o princípio do juiz natural não foi o melhor caminho para impedir a formação e o desenvolvimento do processo na Justiça desse Estado. Isso porque o princípio em causa deveria operar em favor da própria parte que escolhe. Por outro lado, a escolha do juízo sempre implicará escolha, como se existissem dois ou mais juízos naturais, o que afastaria o abuso ou a violação no ato de escolher em si mesmo.
Então, mesmo mantendo a conclusão de que esse tipo de demanda, com diversos litigantes ou não, mas com residência e domicílio da parte autora em outro(s) Estado(s), deveria processada e julgada no Estado de origem dos litigantes, passei a decidir no sentido de que a escolha do juízo sem nenhuma razão aparente em benefício da própria parte autora, pelo menos declinável, seria, tal conduta, um desvirtuamento das normas protetivas aos consumidores em geral e aos litigantes em particular, pois não se poderia imaginar lhes ser mais favorável comparecerem para um depoimento pessoal, por exemplo, em local tão distante, mas também um ato contrário à dignidade da justiça, sendo um dever do juiz prevenir ou reprimir esses atos, nos termos do art. 125, III, do CPC.
Mas, também cheguei a conclusão que não seria o caso de examinar a competência territorial a partir da posição das partes, porque seria necessário identificar um prejuízo real que autorizasse entender-se prejudicada qualquer das partes com a escolha. E não é possível, juridicamente, dizer que a escolha da Justiça de um determinado Estado poderia configurar, em si mesma, dado estrutural de um prejuízo. Pelo menos juridicamente isso parece inviável, pois a parte demandante teria, em tese, esse direito de escolha e a parte demandada tem estrutura no Estado Federado escolhido para o litígio judicial e não há, assim, dificultação à defesa para além do padrão de dificuldade que as normas sobre competência consideram admissíveis, especialmente naquelas hipóteses em que as normas de competência protegem um das partes.
Na verdade, lendo as obras doutrinárias de Ruy Zoch Rodrigues, em especial seu último livro AÇÕES REPETITIVAS – Casos de Antecipação de Tutela sem o Requisito de urgência, Editora Revista dos Tribunais, 2010, me inspirei nelas (é bom dar a origem de tudo, creio) para concluir que a permissividade para que os litígios sejam ajuizados com uma aparente legalidade na definição do território do juízo competente, não poderia mesmo prevalecer, mas que, o melhor fundamento é o de que está presente, o abuso de direito.
Este, o abuso de direito, configura conduta em que o agente opera conforme a Lei particular que lhe confere determinado direito ou faculdade. Examinada individualmente, a conduta é lícita. Ocorre que por não existir sozinho, mas em sociedade, há “outros direitos” convivendo concomitantemente com o seu. No dizer de Pontes de Miranda (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, RT, 1984, vol. 53, p. 61-76, § 5.500), obra com importantes reflexões sobre a estrutura do abuso de direito, onde a minha inspiração se consolidou nas conclusões ora expostas, a coexistência pode configurar a hipótese em que “dois direitos” ocupem o “mesmo espaço”, exigindo a relativização de um ou de ambos para compatibilizar o impasse que então se forma.
Neste ponto situa-se o abuso de direito como regra de relativização ou limitação para permitir a coexistência dos direitos sem choques.
“O abuso de direito, em palavras simples e objetivas, pressupõe licitude no antecedente e ilicitude no conseqüente, pois originariamente o agente lança mão de um direito mas o exerce com excesso ou com abuso”.
“Então, o ato que era inicialmente lícito, em um segundo momento converte-se em ilícito pelo excesso e não em razão da sua origem”.
“Do que se infere que a idéia do abuso sustenta-se em uma apreciação relativa ao modo pelo qual o titular exerce o direito (LORENZETTI, 1996, p. 53)”.
“Quando a pessoa pratica uma ação ou omissão permitida, diz-se que praticou um ato lícito e, portanto, não proibido”.
“Diz-se também que agiu no exercício regular de um direito”.
“Sua ação é lícita”.
 “Quando, porém, o indivíduo pratica uma ação ou omissão proibida, prevista expressamente na lei como não permitida, diz-se que cometeu um ato ilícito e, portanto, condenado pelo Direito Positivo”.
“Mas quando essa mesma pessoa faz valer ou exercer mal o seu direito, cometendo excessos, desvio ou abuso, nasce então o abuso do direito como verdadeiro tertius genus”.
Segundo entendimento já esposado em item precedente, o novo Código Civil de 2002 consagrou esse entendimento e cobriu lacuna do Código Civil de 1916, adotando a teoria do abuso do direito, definindo-o como ato ilícito e afastando discussão doutrinária secular.[1]

Trata-se, esta regra, de limitação de um direito, de configuração objetiva (no sentido que não exige o elemento subjetivo para configurar o abuso de direito) que expressa apenas uma parte do tratamento contemporâneo do tema no direito brasileiro. No entanto, ela permite ver com clareza a razão de ser do abuso de direito. Hoje, no Brasil, agrega-se a essa idéia o elemento subjetivo, ou seja, para que haja abuso de direito o agente tem de praticar o ato de exercício de direito que irá chocar-se com o(s) outros(s) direito(s) dolosamente (de forma direta ou eventual) ou, no mínimo com culpa grave.

Então, o que realmente justifica excluírem-se os demandantes de outros Estados, seja nas ações individuais, seja nas ações em litisconsórcio com outros consumidores residentes no território da Justiça escolhida, é um direito coletivo e um direito difuso assim explicados:
- Cada demanda nova no judiciário de um Estado da Federação implica congestionamento, talvez o fenômeno mais corrosivo à jurisdição contemporânea. Nessa linha, o congestionamento in genere constitui fator de relevância na exegese legal necessária para resolver o problema da competência nesses casos.
Visto assim, o grupo de indivíduos que demanda no Judiciário se ressente de mais demora a cada demanda nova que ingressa. Ocorre, assim, um conflito entre o direito individual de escolha da jurisdição e o interesse coletivo ao menor congestionamento, cenário em que é viável ao Juiz tratar do caso na perspectiva da regulação da coexistência dos dois direitos, excluindo o primeiro e preservando a idéia de menor congestionamento, porque obviamente mais relevante do ponto de vista social.
Fala-se em direito coletivo, porque se trata de uma coletividade de pessoas (os demandantes na Justiça escolhida) determinável, embora indeterminada, elemento chave no conceito de direito coletivo stricto sensu expresso no Artigo 81, inciso II do Código do Consumidor.
Esclareço, desde logo, que o congestionamento in genere para constituir fator de relevância na exegese legal necessária para resolver o problema da competência nesses casos, diz respeito ao conflito que resulta entre as Justiças Estaduais e não apenas entre as comarcas de uma mesma Justiça Estadual. Em relação a essas, quando eventual dúvida em relação a competência territorial se forma, se resolve pelas regras comuns da definição da competência territorial, e, por conseqüência, as regras da definição da competência relativa.
Indo um pouco além, e encarando o problema no âmbito de toda a sociedade de um determinado Estado da Federação, no caso o RGS, e não apenas daqueles que estão demandando em juízo, o conflito supramencionado se opera com direito difuso (artigo 81, III, CDC), pois a mitigação do congestionamento é essencial ao funcionamento do Judiciário, instituição relevante na organização da sociedade.
A última questão a ser enfrentada para saber da possibilidade do equacionamento do problema pela via do abuso de direito, que entendo ocorrer, é relativa à presença de dolo (direto ou eventual) ou culpa grave na conduta dos que escolhem a Jurisdição de um determinado Estado, provocando congestionamento que poderia ser evitado, sem prejuízo a quem escolhe, pelo acesso ao Judiciário de seus Estados de origem.
Como se sabe, o direito brasileiro exige o elemento subjetivo (dolo ou culpa), além da estrutura objetiva de que se falou acima, para configurar o abuso.
E parece não haver dúvida sobre o dolo. Basta interpretar o universo reiterado dessas demandas, que constitui fato notório (Artigo 334, I, do Código de Processo Civil), no qual se percebe a clara intenção de “driblar” a correta definição do território competente da Justiça, sem violação dos demais direitos, em especiais os coletivos que devem ser preservados por primeiro. Outro meio de prova de que se pode lançar mão para completar a convicção acerca do abuso, e do qual lanço, é aquele previsto no artigo 335 do CPC, relativo às máximas da experiência, em cujo contexto reforça-se a certeza do reiterado desvio consciente no âmbito dessas demandas.
A Doutrina tem acolhido o abuso de direito e as conseqüências de sua ocorrência, senão vejamos, mais uma vez no abalizado Rui Stoco:
“Portanto, o abuso do direito de demandar contamina a ação como um todo, enquanto o ato de má-fé praticado no processo, como acontecimento episódico ou isolado, pode, no máximo, conduzir à anulação do ato ou apenas ao reconhecimento do comportamento repudiado pela Lei, com a conseqüente imposição de sanção pecuniária” [2]
(...)
“Atual redação do artigo 187, do Código Civil Brasileiro”:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
“Pedro Baptista MARTINS (1997, p. 157) nos dá uma visão diversa da questão, assim de manifestando: ‘Culpa e exercício de um direito são duas noções incoadunáveis. Onde a culpa aparece não pode haver exercício de um direito e reciprocamente, a idéia de um direito em ação exclui definitivamente a de culpa’ (grifo nisso)”.
“Esqueceu-se, porém, de que no abuso do direito há legitimidade no antecedente, quando a pessoa atua exercendo um direito legítimo e previsto (como o direito de ação), e culpa no conseqüente, a partir do momento em que desborda do direito concedido (abusando daquele direito de ação), tendo em vista o modo irregular com que o exerce.”
(...)
“Impõe-se esclarecer e fincar entendimento no sentido de que o conceito de fraude processual e de má-fé processual liga-se intimamente ao dolo, estando incluída nesse conceito a culpa grave, quando o agente assume integralmente o risco de prejudicar ou age com tal desídia que o seu atuar exsurge inescusável e, assim, confina-se e se aproxima do próprio dolo.”[3]

Penso que, com esse entendimento, fica superada qualquer discussão que existia sobre a ocorrência ou não da violação do juiz natural, ou a questão da violação ou não da dignidade da Justiça, mas definitivamente reconhecido que não é competente o território da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para resolver as demandas que, com abuso de direito, sejam aqui distribuídas, pois a escolha do território da Justiça competente não é um direito inviolável e exclusivo da parte autora, quando tal direito vier em prejuízo da coletividade.
                                                                                                            Gelson Rolim Stocker


[1] STOCO, Rui. ABUSO DE DIREITO E MÁ-FÉ PROCESSUAL - ASPECTOS DOUTRINÁRIOS, Revista dos Tribunais, 2002, p.142-144

[2] STOCO, Rui. ABUSO DE DIREITO E MÁ-FÉ PROCESSUAL - ASPECTOS DOUTRINÁRIOS, Revista dos Tribunais, 2002, p.76-77
[3] STOCO, Rui. ABUSO DE DIREITO E MÁ-FÉ PROCESSUAL - ASPECTOS DOUTRINÁRIOS, Revista dos Tribunais, 2002, p.148